Mas pensemos na Cova da Iria, em 1917: era um desses lugares onde não poderíamos ser visitados, tal como Nazaré nunca poderia ter sido o lugar aonde Deus enviasse o anjo. Está tudo certo. Em 1917, a esmaecida Europa cristã era uma espécie de casca frágil que as trincheiras e as valas comuns, ao modo das fronteiras, partia impiedosamente; e Portugal, que na sua automitografia se arrogou objeto de uma particular predileção divina, era pouco mais do que uma nação periférica, vítima endémica de pobreza, analfabetismo e outras pandemias. E é na periferia dessa periferia, num desses baldios do mundo, que por meio dessas crianças fomos visitados.
Sempre me irritou aquele catolicismo nacionalista que usou uma mariologia envesgada como arma de arremesso contra os histerismos e os rancores anticlericais que, em Portugal, foram sempre tão institucionais quanto um certo clericalismo provinciano, com os seus caciques e provisionamentos de retórica bafienta. Sempre me irritou aquela fação snob – dentro e fora da Igreja – que paternalisticamente considerou e considera Fátima um entretenimento religioso para a turbamulta. E sempre me irritaram aqueles cristãos que viram e veem Fátima como uma «tábua de salvação» para a Igreja portuguesa. Digamo-lo sem medo: Fátima é circunstancial e só assumindo desarmadamente esta perspetiva é que poderemos dar graças pelo dom de Fátima. É circunstancial, mas é à luz do circunstancial que o essencial frutifica, na vida de cada um, em estado de graça. E é à luz do essencial que podemos dar graças pelo dom do circunstancial.
Não faltarão especialistas a refletir sobre o fenómeno de Fátima desde a perspetiva da Teologia ou da História; eu prefiro concebê-lo poeticamente: para mim, Fátima é uma poética.
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